Do umbiguismo/autofagia ou estórias de uma classe sem (muita) classe
Numa época em que a sociedade, em geral, parece estar a ser acometida do vírus do umbiguismo, não surpreende que o mesmo tenha atacado, de forma severa, a classe docente, originando, como consequência, comentários autofágicos que pouco ou nada contribuem para a reabilitação de uma classe profissional cada vez mais desacreditada. Se dúvidas houvesse acerca desta não muito nova calamidade, a exposição da mesma nos blogues e grupos de redes sociais está bem evidente.
Assim, assiste-se a uma espécie de "salve-se quem puder" ou a um "desde que eu esteja bem, os outros que se lixem" que é deveras preocupante, mas que não é senão um espelho do resto da sociedade. É ver os mais novos contra os mais velhos, os contratados contra os de quadro, os colocados contra os não colocados… Associada ao umbiguismo, há, quase sempre, uma incapacidade tremenda de autocrítica e de assumpção de falhas e erros cometidos ou uma procura incansável de desculpas para os mesmos, arrogantemente invocando o direito de se ser como se é e de que quem critica deve ter a mania da superioridade (vide "A virgem ofendida").
Por muitos defeitos que possa ter, o sistema de colocações tendo em conta a graduação profissional é, ainda assim, o mais justo. Claro que, se quisermos denegri-lo, podemos recuar e dizer que há instituições de ensino superior em que as classificações atribuídas são muito mais altas do que noutras, que as notas dos mestrados pós-Bolonha são significativamente superiores às das licenciaturas pré-Bolonha, que tais diferenças não são forçosamente sinónimo de que quem tem classificações mais altas é mais competente, etcétera, etcétera… A verdade é que o passado recente, com a pérfida bolsa de contratação de escola, na qual, em numerosas situações, só faltava a fotografia do candidato que muitas escolas iriam selecionar, demonstra que a ordenação dos candidatos por graduação profissional é, apesar de tudo, o sistema mais justo. Do mesmo modo, não é de esquecer que quem faz sacrifícios e arrisca colocações mais afastadas do seu local de residência tem de ser premiado, relativamente aos que nunca arriscaram sair da sua zona de conforto, independentemente das razões que motivaram uns e outros para as decisões que tomaram. Todas as nossas opções têm consequências e há que as assumir, sem vir, depois, fazer o papel do "desgraçadinho": se não me sacrifiquei nem investi o mesmo que os outros, por que deveria ter a mesma recompensa?
É igualmente frequente os professores contratados esquecerem que os professores do quadro também já foram contratados e vice-versa. A vinculação não caiu do céu, foi muitas vezes precedida de colocações a centenas de quilómetros da residência familiar, implicando anos e anos com a casa (e, às vezes, os filhos) às costas, até conseguirem aproximar-se. Nesta profissão, como na sociedade atual, a ideia de que alguém que já tem alguma coisa foi beneficiado em relação a quem não a tem é uma constante, não se analisando o que uns fizeram para ter o que têm e o que outros não fizeram. Curiosamente, esta alergia ao sacrifício, ao esforço e ao mérito acaba por ser transversal e por atingir, muito por responsabilidade dos professores, os próprios alunos: não se pode premiar e distinguir os melhores e os que mais investiram, para não traumatizar os menos bons e os que pouco ou nada investiram…
A famosa recuperação de tempo de serviço (RTS) foi motivo para mais uma guerra entre pares. Uma vez que o sempre prestável Arlindo ainda não disponibilizou no seu blog um simulador que permita avaliar o prejuízo de quem já está no topo da carreira relativamente aos que estão em escalões mais baixos, não é possível afirmar, sem errar, até que ponto quem não beneficia desta recuperação será prejudicado, em termos de aposentação, quando comparado com os que vão recuperar agora todo o tempo de congelamento. O que não é errado é afirmar que estes professores, como todos os outros, também tiveram tempo de serviço congelado; se conseguiram chegar ao topo de carreira foi por terem muito mais anos de serviço que aqueles que ainda não chegaram lá; da RTS pouco ou nada beneficiaram. É um facto que o sistema de quotas, no acesso a determinados escalões, prejudicou significativamente muitos docentes, mas não foram os professores dos escalões mais altos os responsáveis pela imposição do sistema de quotas, pelo que tal argumento não pode servir de arma de arremesso contra estes.
E que dizer das guerras autofágicas motivadas pela tão tristemente famosa avaliação do desempenho docente (ADD)? Aqui também, o sistema de quotas para a atribuição de menções de mérito é altamente perverso, desmotivando quem devia ter sido igualmente premiado, mas que ficou de fora das menções, por força desse sistema de quotas. E melhor será não falar da forma falaciosa como algumas dessas menções são atribuídas… Quando houver, da parte de quem avalia, justiça, seriedade e coragem para avaliar corretamente, talvez aqueles que, nas escolas, vivem "encostados à sombra da bananeira", numa fuga permanente a cargos ou a qualquer coisa que dê trabalho (vide "[in]Competência"), sejam avaliados com aquilo que merecem e não com o "BOM" que também é atribuído a quem efetivamente trabalhou muito mais e só não teve "MUITO BOM" ou "EXCELENTE", por falta de quotas…
O famoso plano "+ Aulas + Sucesso", com a sua risível medida de trazer para o sistema professores já aposentados, veio instalar nova guerra entre professores. Apesar de ser muito duvidoso que a grande maioria dos aposentados adira a tal proposta (além de estarem altamente desgastados pelo exercício da profissão, se calhar já fizeram contas e já perceberam que o IRS lhes levará parte substancial do suplemento remuneratório que lhes seria dado…), é de admitir que alguns (poucos) até queiram/precisem de aceitar tal proposta, mas, tanto quanto percebemos da leitura do referido plano, trata-se de uma medida a aplicar só para grupos de recrutamento deficitários e, embora o plano não o diga, provavelmente só nas zonas onde há falta de professores. Como já se disse anteriormente num outro artigo, a escola precisa é de professores novos e com força física e anímica para enfrentar os desafios da educação do século XXI, mas, se uma minoria de aposentados de grupos de recrutamento carenciados, nas zonas onde faltam professores, quer/precisa de se manter a trabalhar, que diferença pode fazer àqueles mais novos que até são de outros grupos de recrutamento e/ou não concorrem para essas zonas? É mais uma guerra sem qualquer sentido…
É lamentável assistir à troca de injúrias, entre uns e outros, ao esquecimento de que quem está no fim da carreira já esteve, há muitos anos, no início dela, passando por todas as vicissitudes do sistema. O que ainda não se viu foi aqueles que reclamaram do facto de os professores mais velhos terem redução da componente letiva prescindirem dessa redução, quando a ela conseguem ter direito. Só se reclama quando não se tem, pois assim que se consegue ter, esquece-se completamente dos que não têm, já sendo pertinente o argumento "se estou com redução, é porque já tenho muitos anos de serviço". Podemos até estar enganados, mas qual é a profissão em que os mais novos têm os mesmos ou mais privilégios que os mais velhos, com muitos mais anos em exercício de funções? Não vamos discutir da justiça da situação, mas ainda não vimos ninguém, quando passa do grupo dos mais novos para o grupo dos mais velhos, prescindir desses privilégios ou exigi-los para os mais novos. Por isso, sejamos coerentes.
Se é um facto que muitos dos mais velhos revelam inabilidade para o trabalho com novas tecnologias, quando comparados com os mais novos, não é menos verdade que teriam muito a ensinar a alguns dos mais novos, por exemplo, na forma de ler e escrever corretamente em português. É certo que os mais velhos podem estar cansados e desgastados, mas também é inegável que possuem uma experiência profissional (e de vida!) que os mais novos ainda estão longe de alcançar. Por isso, mais do que guerras fratricidas que a ninguém beneficiam, seria muito mais vantajoso, para todos e para a própria escola, a junção das capacidades de cada um. Da mesma forma que os mais velhos não têm de ser vistos como um trapo usado e pronto para deitar fora, também os mais novos não podem ser vistos como alguém inexperiente que não sabe nada de nada.
Para (tentar) mudar aquilo que se está a viver entre pares, há que começar por algum lado e o primeiro talvez seja a capacidade de autocrítica, a humildade para aceitar críticas fundamentadas ao seu desempenho, o esforço para se fazer melhor. Seguidamente, é necessário que cada um aprenda a competir mais consigo mesmo do que com os outros, pois, com estes, o desejável é trabalhar em equipa. Acreditamos que é assim que se ganha o RESPEITO por cada profissional desta ou de qualquer outra área. Logo que seja alcançado, terá o professor toda a legitimidade para reivindicar tudo aquilo que lhe é devido, que não passa exclusivamente por melhor salário, por RTS, por mais e melhores condições de trabalho, mas principalmente pela valorização e pelo respeito que lhe devem ser atribuídos por toda a sociedade.
Quando os professores se aperceberem de que "a união faz a força", talvez sejam muito mais fortes e estejam muito mais unidos, para impedir que alguém venha "dividir para reinar"…